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XIMENA DÁVILA: Quem é esta mulher?

Com o falecimento do biólogo Humberto Maturana, cumpre à Ximena Dávila a tarefa de coordenar a missão do Pensamento do Sul do Mundo

Foto: Blog do Gomes
A epistemóloga Ximena Dávila em um conversatório com Humberto Maturana no Sesc/Pompéia em São Paulo

O autor do Blog, Gildson Gomes com a epistemóloga chilena Ximena P. Dávila, cofundadora da Escola Matríztica de Santiago do Chile

Por Gildson Gomes dos Santos, 29/05/2021.

Revisado às 12h53 de 30/05/2021.

Por volta de 2010, enquanto me desincumbia de uma tarefa acadêmica no programa de doutorado da Universidade de Buenos Aires, perguntei-me de que tipo de realidade falava quando fazia referência à noção de intenção criminosa, também conhecida como dolo no âmbito jurídico. Entretanto, na sequência, me dei conta de que não teria como propor uma resposta para tal questão sem antes explicitar a natureza de um outro fenômeno que opera como antecedente lógico na composição do argumento: a realidade. Isso me forçou a seguir perguntando: de que falo quando faço referência ao que defino como real?

Naquele momento de perplexidade, ante uma pergunta aparentemente tão trivial, por acaso, na mesa do computador de minha residência, onde realizava uma pesquisa na internet, deparei-me com um exemplar de Emoções e Linguagem na Educação e na Política (MATURANA, 2002), que estava sendo lido por um dos meus filhos. Comecei a lê-lo de imediato e compulsivamente. Terminadas a leitura e releitura, busquei outras obras, artigos, dentre os quais o seminal Biology of Cognition (Id., 1970). A experiência acabou sendo tão arrebatadora que me catapultou ao Chile dois anos depois.

Em janeiro de 2012, em Santiago, fiz duas importantes descobertas. A uma, percebi que enquanto escutava Humberto Maturana estava diante de um autor que não tinha lido até aquele momento; a duas, conheci sua outra metade (a feminina), uma espécie de alma gêmea: a epistemóloga Ximena Dávila: a mãe das Conversaciones Liberadoras[1] (DÁVILA; MATURANA, 2008), e, depois de algum tempo, tudo começou a fazer sentido.

Num certo momento do encontro, pude conversar, em particular, com Humberto Maturana a respeito das minhas perplexidades, que já lhe tinham sido antecipadas dois dias antes. Conversamos sobre a noção de intenção. El Doc., como era tratado por seus discípulos, expôs sua reflexão sobre o tema e tivera a humildade de escutar a minha, cuja proposta resultou na monografia Perspectiva pós-colonialista sobre a intenção criminosa: uma abordagem fundada na matriz biológico-cultural da existência humana[2], citada na festejada obra Direito Penal: Parte Geral, do jurista paranaense Paulo César Busato (BUSATO, 2018). Finalmente, impressionado com a eloquência de Ximena, que tinha acabado de sair da sala, perguntei-lhe: “Quem é essa mulher?”

Compreendo, hoje, o motivo pelo qual Humberto Maturana fora sintético em relação à minha curiosidade. De fato, o tempo que lhe remanescia não era suficiente para expor uma densa história. Comecei a perceber que Ximena Dávila significava para o biólogo mais do que uma sócia num empreendimento cultural chamado Escola Matríztica de Santiago, fundada no ano 2000, depois de uma conversa que ambos tiveram, por volta de 1997, sobre a natureza cultural da dor e do sofrimento de quem pede ajuda relacional. Enquanto viveu o saudoso professor chileno não se cansou de declarar que Ximena Dávila foi a pessoa que o ajudou a completar e a pôr em movimento sua Biologia do Amar.

Com efeito, as parceiras do professor Maturana com ex-alunos, discípulos e cientistas renomados dos mais destacados centros de produção de conhecimento do Ocidente lhes rederam muitos frutos e consequências inesperadas, inclusive no âmbito social e filosófico (GRACIANO, 1997). Nesta quadra, por exemplo, não obstante as legítimas resistências, dou por consolidada a transição entre as metafísicas do Ser e do Fazer[3]. Fato que, por sinal, acha-se muito bem documentado no livreto Del Ser al Hacer, publicado originalmente na Alemanha sob o título Vom Sein zum Tun (MATURANA; PÖRKSEN, 2004).

Sucede que o Maturana do séc. XX, não foi o mesmo do séc. XXI, mesmo que tenha conservado a coerência de suas abordagens científicas na medida em que ampliava o fausto conhecimento. E o fator decisivo dessa transformação maturaniana tem nome, data e origem auditáveis. Com efeito, ao contrário do que sucedera com Kant-I, o pré-crítico racionalista, e o Kant-II, convertido ao criticismo idealista transcendental após acordar do “sono dogmático” (SILVEIRA, 2002); com Wittgenstein-I (2001), o analítico, e o Wittgenstein-II (2008), da filosofia da linguagem; ou, por fim, com Luhmann-I (1983), que migrou do funcionalismo sistêmico-estrutural para a teoria da autopoiese social como Luhmann-II (2005), não houve no pensamento de Humberto Maturana qualquer solução de continuidade.

Antes de fundar a Escola Matríztica com a bióloga-cultural Ximena Dávila para investigar a matriz biológico-cultural da existência humana, predominava em Maturana o olhar sistêmico do cientista ante a práxis do viver cotidiano. Esse foi o biólogo Maturana-I, que habitou El Árbol del Conocimiento (MATURANA; VARELA, 1984). Entretanto, a partir dos anos 2000, mantendo em cena o biólogo (do conhecimento, da linguagem e do amar), eis que surge, sob El Árbol del Vivir (DÁVILA; MATURANA, 2015), o biólogo-cultural Maturana-II, agora reflexionando, adicionalmente, sobre cultura, epistemologia e filosofia.

O convívio com Ximena e a equipe de Matríztica contribui para que o biólogo Maturana se desse conta de que a espécie zoológica Homo sapiens redunda num ser antropoecológico[4], ou melhor, numa unidade ecológica organismo-nicho. É esse Maturana-II, multidimensional e enriquecido pelos inovadores aportes da Biologia-Cultural, o Humberto Maturana que se completa com os insights sistêmicos recursivos de Ximena Dávila.

A meu ver, surge desse encontro entre almas gêmeas, a despeito do autoelogio kantiano[5] (KANT, 2002), o segundo giro copernicano do pensamento ocidental. Essa virada, após De revolutionibus orbium coelestium (COPERNICI, 1453), consumou-se no exato momento em que a cofundadora da Escola de Pensamento do Sul do Mundo, Ximena Dávila, em 2002, pela primeira vez, dera-se conta de que o tema da realidade é centralmente de índole epistemológica, e não ontológica (DÁVILA; MATURANA, 2015, p. 552). Isso muda tudo no campo do saber, até mesmo anteriormente a Sócrates, que, não por acaso, tinha o saudável hábito de escutar as reflexões de sábias mulheres do seu tempo.[6]

Até então (e o próprio biólogo chileno, apesar de já ter rompido com o Pensamento Hermenêutico em meados do séc. XX, reconhece publicamente esse fato), o sistema científico desenvolvido pelo Maturana-I permanecia salpicado por grânulos ontológicos, cuja circunstância se evidenciava na marcante distinção entre “ontologias transcendentes” e “ontologias constitutivas” (MATURANA, 2002). Dávila mostrou, porém, que esta noção ocultava o fato de que a questão da realidade tem a ver com o fazer, logo com o conhecimento, e não com o ser em si. É, precisamente, nessa quadra reflexiva, que surge o Maturana-II e, com ele e Ximena, também, a epistemologia unitária de Santiago, que imputa aos seres antropoecológicos (humanos) o fundamento de todo conhecer.

Ainda à guisa de esclarecimento, convém realçar que é muito comum, em particular nos campos da Sociologia e do Direito, a associação da teoria social dos sistemas autopoiéticos, proposta por Luhmann-II, à noção de autopoiese concebida pelo biólogo Humberto Maturana. Tal relação, que geralmente aparece em notas de rodapé de artigos e livros universitários, é, de fato, despropositada, motivo pelo qual cobra discernimento com o propósito de dissolver mal-entendidos. É que, ainda que sejam sistemas determinados pelo estado de sua estrutura, Direito e Sociologia não são sistemas autopoiéticos.[7]

DISPONÍVEL EM PDF: AQUI

[1] Disponível em: <https://www.redsistemica.ar/articulo94-1.htm>. Acesso em 28 mai. 2021.
[2] Santos (2013).
[3] Vale anotar que no domínio do pensamento contemporâneo há certo preconceito à palavra “metafísica”, por se achar associada ao abstracionismo especulativo da filosofia da consciência, talvez. Sem embargo, neste reflexão, o sobredito vocábulo não tem essa conotação, visto que consideramos o metafísico tão real quanto o físico, na medida em que, como tais, “só existem como borbulhas de ações humanas, que flutuam no nada” (MATURANA, 2009b, p. 169). “Son las personas, científicos o no, quienes tienen problemas con la metafísica; la ciencia no” (Id., 2011).
[4] Do grego antrp(o)- + ecológico.
[5] O filósofo alemão Immanuel Kant, na 2ª edição de sua Crítica da razão pura, considera o resultado da conciliação transcendental que o próprio fizera entre racionalismo e empirismo uma revolução copernicana.
[6] Refiro-me a filósofa grega Diotima de Mantinea, citada no Banquete de Platão como uma das mentoras de Sócrates. Segundo Plutarco, outra lume do filósofo ateniense teria sido Aspásia de Mileto, manceba do general Péricles. Há relatos de que Sócrates frequentava as rodas reflexivas promovidas por Aspásia durante o Século de Ouro de Atenas (EISLER, 2007, p. 178)
[7]  Vide nota 2. Nesse trabalho mostro que Luhmann (2007) distorce alguns conceitos propostos por Humberto Maturana buscando salvar o formalismo positivista de sua teoria social.

REFERÊNCIAS

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 4ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2018. Vol. 1.

COPERNICI, Nicolai. De revolutionibus orbium cœlestium, libri VI. Nurembergue: Johannes Petrejus, 1543. Disponível em: <https://dl.wdl.org/3164/service/3164.pdf>. Acesso em 28 mai. 2021.

DÁVILA, Ximena P.; MATURANA, Humberto R. El Árbol del vivir. Santiago do Chile. MVP Editores, 2015.

_____._____. Habitar humano: en seis ensayos de biología-cultural. Santiago: J. C. SÁEZ, 2008.

EISLER, Riane (1987). O Cálice e a Espada. São Paulo: Palas Atenas, 2007.

GRACIANO, Miriam (1997). A teoria biológica de Humberto Maturana e sua repercussão filosófica. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1997, 205 p. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/>. Acesso em 16 out. 2020.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. 1 e 2 v.

_____(1993). El derecho de la sociedad. Trad. do original alemão de Javier Torres Nafarrate. 2ª ed., México: Herder, 2005, 676 p.

_____. (1996). Introducción a la teoría de sistemas: lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. 2ª reimp. México: Universidad Iberoamericana, 2007.

MATURANA, Humberto R. (1970). Biology of cognition. Illinois: Biological Computer Laboratory (BCL Report 9.0), University of Illinois, Urbana IL, 1970. 58p. Disponível em: <http://www.enolagaia.com>. Acesso em 24 mar. 2012.

_____. The Search for Objectivity or the Quest for a Compelling Argument. The Irish Journal of Psychology, nº 1, 1988, Vol. 9, pp. 25-82. Disponível em: <http://www.enolagaia.com>. Acesso em 25 jan. 2012.

_____. Emociones y lenguaje en educación y política. 10ª ed. Santiago: Ed. Dolmen Ensayo, 2001. Disponível em: <http://www.franjamoradapsico.com.ar>. Acesso em 12/06/2010.

_____. (1998). Emoções e linguagem na educação e na política. Trad. José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: UFMG, 2002. Disponível em: <http://livrosdamara.pbworks.com>. Acesso em 26/11/2010.

_____; PÖRKSEN, Bernhard. Del ser al hacer: los orígenes de la biología del conocer. Santiago de Chile: JCSAÉZ, 2004, 109 p.

_____; VARELA, Francisco.  (1984). El árbol del conocimiento: las bases biológicas del entendimiento humano. Buenos Aires: Lumen, 2003, 172 p.

_____. La realidad ¿objetiva o construida? Fundamentos biológicos de la realidad – Tomo I. 2ª ed.; Barcelona: Anthropos, 2009a, 162 p.

_____. La realidad ¿objetiva o construida? Fundamentos biológicos del conocimiento – Tomo II. 2ª ed.; Barcelona: Anthropos, 2009b, 286 p.

_____. Entrevistas. Ciencia: Humberto Maturana. Agenda Viva nº 23 [en línea]. Madrid:  Fundación Félix Rodríguez de la Fuente, 21 marzo 2011. “Humberto Maturana: ‘Lo que nosotros señalamos es que en el vivir humano lo biológico y lo cultural no son separables”. Entrevista concedida a Dionisio Romero. Disponível em: <http://www.agendaviva.com>. Acesso em: 16/06/2012.

SANTOS, Gildson Gomes dos. Perspectiva pós-colonialista sobre a intenção criminosa: uma abordagem fundada da Matriz Biológico-cultural da Existência Humana. Buenos Aires: s.n, 2013. 351 p. -Universidade de Buenos Aires. Faculdade de Direito – departamento de pós-graduação.
(Ref.: 341.59 – S 237, 010578 – TJBA – Seção Especial / CAB). Disponível em: <http://www5.tjba.jus.br/biblioteca/index.php/servicos>. Acesso em 29 mai. 2021.

SILVEIRA, F. L. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental. Florianópolis, Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 19, número especial, pp. 28-51, mar. 2002. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/>. Acesso em: 15 ago. 2018.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. 4ª ed.; tradução castellana do original em alemão de Afonso García Soares e Ulises Moulines. Barcelona: Editorial Crítica, 2008.

_____. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001.

 

 

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