O julgamento do Mensalão excede, às escâncaras, as fronteiras da juridicidade, em cujo domínio os juízes do Supremo Tribunal Federal deveriam permanecer durante a exposição de seus vereditos. Sem embargo, ainda que não falte quem ache normais as manifestações de alguns ministros, vislumbramos a real possibilidade de algumas sessões serem convertidas em material de excelente qualidade para exame de psicólogos e psiquiatras forenses, sem desconsiderar, por óbvio, que antropólogos também são beneficiários em potencial de tais resíduos judiciários.
De fato, no curso do julgamento dos mensaleiros, têm chamado atenção o destempero do presidente da Corte Suprema, o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo-crime, e o cinismo do ministro Ricardo Lewandowski, o respectivo revisor. O primeiro desabrocha sua estupidez quando finge ser radicalmente sincero, e o segundo por ser radicalmente fingido, quando tenta convencer seus pares e o incrédulo público com sua retórica ingênua e contraditória. A situação é tão esdrúxula que a estupidez de Barbosa e Lewandowski aparece diferenciada da dos demais seres humanos, que, como diria Einstein, já é infinita por natureza.
Na verdade, o que a mídia, por elegância, chama de “bate-boca entre ministros”, como o que se dera na última quinta-feira (15/08), no meio-fio, sem hesitação, chama-se de “baixaria”. Somos forçados a admitir que o ministro Lewandowski forçou a barra, tentando cavar um pênalti para mais adiante convertê-lo em favor de outros réus, que se escondem no seu discurso judiciário fingido; e isso deixou o presidente Joaquim Barbosa irritado, mesmo não se atrevendo a dar nome aos bois favorecidos pelo cinismo lewandowskiano. Entretanto, seria necessário Barbosa apontar, com o dedo em riste, como costuma fazê-lo, ou Lewandowski admitir, enunciando com todas as letras, provável favorecimento a alguns réus condenados para que isso esteja, de fato, ocorrendo? Em princípio, entendemos que não!
A necessidade de se usar palavras para exprimir uma intenção é uma coerência operacional que diz respeito somente ao pensamento colonialista (moderno), em cuja estrutura residem a arrogância, a hipocrisia, o cinismo, o desrespeito, a desconfiança, a apropriação (inclusive da verdade). Segundo essa maneira de pensar dominante, quando alguém quer fingir, contradizendo que não deseja algo, argumenta: “Mas eu não falei isso!”, como se as palavras pudessem substituir a experiência vivenciada na práxis cotidiana. Por isso, vira e mexe, Lewandowski aparece negando seu efetivo comportamento, por não ter enunciado publicamente a ação correspondente, como a de que estaria praticando a odiosa chicana. (Ele prefere dizer que está fazendo “justiça”).
Ocorre que as palavras são secundárias na linguagem e nela nada significam, porque apenas servem para evocar fenômenos ou coordenações de ações que o observador distingue nas redes de interações. Quem escuta uma donzela dizendo, ao sair do banheiro, que está “molhadinha” não significa, automaticamente, que ela tenha se banhado, porque o contexto pode dizer outra coisa. A fala exprime apenas um modo de linguajear, e a ela não se reduz a linguagem, que, do ponto de vista pós-colonialista, se manifesta na recursividade de coordenações consensuais de condutas.
Com efeito, quando observamos uma interação entre duas ou mais pessoas e essa interação se torna recorrente, repetitiva historicamente, de modo que possamos abstrair de tal relação coordenações de comportamentos que se reproduzem consensualmente no fluxo interacional com certa duração, temos a linguagem, ainda que nenhuma palavra tenha sido pronunciada. Na verdade as palavras servem apenas para evocar as coordenações de conduta que o observador visualiza em certa rede de comportamentos humanos recursivos.
O que efetivamente desejamos esclarecer, pois, é que, a despeito de o ministro Lewandowski não ter enunciado uma única palavra para admitir que sua ingênua retórica foca a absolvição dos mensaleiros petistas, isso não significa que ele não esteja se coordenando o tempo todo para que isso ocorra, porque os vídeos do julgamento revelam exatamente o oposto. E a nossa conclusão é, de fato, a de que o juiz Lewandowski atua com essa finalidade, embora tente escondê-la nas dobras dos signos, e o ministro Joaquim tenha receio de evocar essa coordenação de ação com as palavras adequadas: tendenciosidade lewandowskiana.
Na verdade, não só Lewandowski é tendencioso, ele apenas não o admite publicamente, porque prefere a hipocrisia à sinceridade, em função da liturgia do cargo que ocupa, e, por conceber a linguagem como um sistema de signos, aproveita-se muito bem desse estratagema simbólico. E nesse sentido, o ministro Joaquim Barbosa, que desconhece a linguagem como um fenômeno biológico, também cultiva a hipocrisia, na medida em que opta por ofender seu colega, fingindo-se sincero, a evocar com a palavra adequada a coordenação de ação por ele praticada. Contudo, não seria demasia afirmarmos, por fim, que hipocrisia e estupidez não são propriedades imanentes a ambos, pois pertencem a quem conserva e realiza o modo de vida próprio da cultura patriarcal dominante. E, nesse sentido, então, Lewandowski e Barbosa são mero reflexo da suprema estupidez que nos envolve.
REFERÊNCIAS
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