Na última quinta-feira (28/02), em entrevista concedida à imprensa internacional, o ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ao tempo em que rotulava de “frouxo” o sistema penal brasileiro, propunha uma “reforma de mentalidade da parte dos juristas”, como solução para o grave problema da impunidade vivenciada pela sociedade brasileira.
É evidente que a opinião de quem está investido no cargo de presidente da Suprema Corte, bem como no de presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tal qual o ministro Barbosa, não pode ser comparada a um mero pitaco, sem implicação prática alguma. Talvez por isso, as principais representações dos magistrados brasileiros se apressaram em repudiar boa parte das ponderações barboseanas, pondo-as na conta de graves ofensas à democracia brasileira, por malferir a liberdade e a independência funcional da magistratura brasileira.
Naturalmente, há nessa altercação de togas manifestos exageros, pois sabemos que, por aqui, ninguém mais do que o ministro Barbosa, defende a dignidade da magistratura nacional. Nesse sentido as legítimas manifestações da AMB, AJUFE e ANAMATRA pecam por excesso. Por outro lado, ainda que vejamos um acerto na opinião do presidente do STF e do CNJ, no que toca à proposta de reforma na mentalidade dos juristas, entendemos que o apego a recorrentes “esclarecimentos”, como propõe Barbosa, não ajuda nadica de nada a debelar o estado de violência que intranquiliza os brasileiros, tampouco a severidade dos juízes.
Na verdade, nesse jogo de empurra, se alguém nos perguntar em quem apostamos, não temos dúvida de cravar na coluna do meio, na esperança de que ambos estejam equivocados, tanto o ministro Joaquim Barbosa, quanto as associações dos magistrados, que apontam, explicitamente, a “ausência de estrutura adequada dos órgãos de investigação policial; de uma legislação processual penal desatualizada, que permite inúmeras possibilidades de recursos e impugnações, sem se falar no sistema prisional, que é inadequado para as necessidades do país”, como se nada tivessem a ver com essas distorções.
Os juízes precisam entender, como também os advogados, os promotores de justiça, os procuradores, os defensores, os ministros das altas cortes de justiça, que a atividade jurídica não é um em si, isto é, necessária por si mesma. No fundo, a presença de juristas (ou dos chamados operadores do direito) só faz sentido nos espaços de convivência timbrados pela estupidez humana. Nos domínios sociais em que o ser humano respeita o outro, como legítimo outro na convivência, o Direito, simplesmente, não faz falta.
Cai por terra, então, o vetusto aforismo romano atribuído ao jurista Ulpiano (170 – 228 d.C.), segundo o qual: Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus[i]. Com efeito, numa sociedade constituída por seres humanos autônomos[ii], éticos[iii] e democráticos[iv] a pergunta pelo Direito configura um ridículo nonsense. E essa paradoxal constatação, apenas na aparência, por óbvio, nos conduz à conclusão de que o fenômeno jurídico se manifesta como um sintoma de certa anomalia relacional, tal como a febre ou a dor de cabeça, que sinalizam a ocorrência de patologias na dinâmica fisiológica do organismo. A diferença é que a juridicidade aparece na dinâmica relacional do ser humano, para indicar a incivilidade deste no trato com o semelhante. Nesse sentido, o Direito não é senão um sintoma da estupidez humana.
Em termos científicos pós-colonialistas, o Direito se reduz a uma coerência operacional de certo modo de convivência. Não mais que isso. Seria possível falarmos em direito (objetivo ou subjetivo), em um espaço cuja dinâmica relacional humana seja timbrada pela amorosidade, pelo respeito, pela co-inspiração, pela colaboração, pela ética, no sentido de que assumimos a responsabilidade pelo que fazemos, mesmo quando alegamos que fizemos sem querer o que, na verdade, fizemos, de fato, querendo, tendo em vista que ninguém faz sua uma oportunidade ou um instrumento caso não o deseje, certamente que sim; contudo, não como algo necessário, inafastável, essencial à convivência humana, como pensavam as civilizações greco-romanas, a modernidade e a pós-modernidade jurídicas, que reunimos aqui sob a grife do pensar colonialista.
Com efeito, hoje, verificamos a existência de duas correntes metafísicas de pensamento, que correspondem a duas maneiras básicas e distintas de abordar a realidade: uma de natureza transcendental[v], que reivindica a separação de sujeito e objeto, configurando este como uma essência do mundo a ser desvendada por aquele; e, outra de caráter constitutivo, que, grosso modo, postula a constituição operacional do objeto pelo sujeito (observador), num processo de distinção fenomênica na experiência. Nesta via explicativa, a abordagem enactiva[vi] dá o tom no processo de conhecimento do real; enquanto, naquela, o enfoque transcendente é a marca.
Desse modo, surgem duas concepções ontológicas do conhecimento: a “metafísica transcendental” (tradicional)[vii] e a “metafísica constitutiva” (pós-colonialista)[viii], que, na verdade, simbolizam muito mais que meros aportes epistemológicos à ciência, na proporção em que transbordam o domínio da especulação científica, para afetar o modo de viver e conviver do próprio observador. Realmente, quem trilha por uma das duas vias metafísicas[ix], não se limita a eleger um enfoque explicativo do real; porque, também, implícita ou explicitamente, revela o respectivo modus vivendi no espaço relacional.
Então, cada maneira de pensar, cada concepção ontológica do viver e conviver, corresponde a determinada mentalidade biocultural da existência humana. Efetivamente, o que essas observações estão a indicar, de algum modo, é que há inevitável imbricação dessas estruturas metafísicas com certas mentalidades culturais[x]. De mais específico, com duas: uma que se destaca por seu dístico potestativo, subordinando a validade do saber, quando se sabe, a uma realidade objetiva, independente do observador; e outra que propõe a emergência de uma epistemologia unitária e, radicalmente, humanista, focada no mútuo respeito e na autonomia do sujeito, que é alçado à condição de ente constitutivo do conhecimento.
Deste ângulo, já se torna possível avistar a razão por que a metafísica transcendental forma um encaixe perfeito com as pautas de conduta opressoras, especialmente com o modelo colonialista do operar humano, ainda dominante no Mundo. Com efeito, as ontologias transcendentais tendem a exorbitar a configuração de meras estruturas de pensamento, para, em seu conjunto, converterem-se numa poderosa arma, que, além de provocar epistemicídios[xi], têm sido utilizadas, ao longo dos tempos, implícita ou explicitamente, para dominar, subjugar, quando não exterminar seres humanos[xii].
Assim o fizeram os povos colonizadores, abertamente, no passado, apropriando-se de territórios; e, pela via explicativa ontológico-transcendental, continuam fazendo, dissimuladamente, no presente; impondo aos povos, em geral, explicações, teóricas ou não, fundadas numa suposta realidade a que somente os próprios (dominadores) têm acesso privilegiado. E, essa forma de colonização, dando-se de modo inconsciente, como se dá, efetivamente, será considerada ainda mais bruta e cruel, na medida em que supõe o ser humano como ente manipulável discursivamente.
Essa íntima relação, da metafísica tradicional com a potestade colonizadora; bem assim, com os centros dominantes que a gestaram e difundem, sugere a acomodação das ontologias transcendentais numa rubrica geral, que rotulamos de mentalidade colonialista. Por seu turno, o espaço de pensamento, imbricado na metafísica constitutiva, cuja estrutura se assenta, fundamentalmente, na autonomia do ser humano, na democracia e no respeito ao outro, como legítimo outro na convivência[xiii], é tido neste espaço de reflexão, sob a epígrafe mentalidade pós-colonialista, com o pretexto de sinalizar um novo marco epistemológico no domínio do conhecimento jurídico.
A esse altura, o leitor atento já deve ter-se dado conta do motivo pelo qual apostamos no empate do “Equivoco”. É óbvio que não há espaço para mudança de mentalidade no caminho explicativo trilhado pelo ministro Joaquim Barbosa e pelos juízes representados pela AMB, AJUFE e ANAMATRA, pois todos se encontram no mesmo barco, ou seja, estacionados no domínio de pensamento orientado pelas ontologias transcendentais, terreno fértil em que vicejam a arrogância, a estupidez, a violência, a agressão. Definitivamente, não é possível saltar do domínio da estupidez para o espaço da amorosidade sem cambiar as correspondente emoções, que especificam os fazeres e sentires íntimos dos seres humanos.
Talvez por isso, o sábio ministro Barbosa fale de “reforma de mentalidade”, e não de transformação de mentalidade, que só terá lugar no espaço pós-colonialista do pensar. Certamente a isso se deva, também, a tentativa de a AMB, AJUFE e ANAMATRA se autoeximirem da suas respectivas responsabilidades pelos infortúnios do frouxo sistema penal brasileiro, cuja razão de ser é própria do modo de convivência que elegemos como possível, no estado atual de nossa estupidez.
Luiz Fernando R. de Sales
05/02/2016
Deivison Conceição
04/11/2015
Gildson Gomes dos Santos
04/11/2014
Gildson Gomes dos Santos
27/09/2014
Luciana Virgília Amorim de Souza
25/09/2014