Longe dos dogmas
O ministro da Educação diz que o Brasil precisa de mais pragmatismo e menos ideologia para melhorar o ensino
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Monica Weinberg
“Em uma igreja ou em um partido político as pessoas podem divulgar a ideologia que bem entenderem. Nas escolas, não. Elas devem sempre se basear na diversidade”
Do gabinete do ministro da Educação, Fernando Haddad, 44 anos, saiu um projeto para o Brasil que, de saída, conseguiu o feito raro de agradar a especialistas de diversos matizes ideológicos. O mérito do plano foi criar um indicador que permite comparar o desempenho das escolas brasileiras de modo que as piores possam ser cobradas com base em metas e as melhores sejam premiadas. O princípio, portanto, é o da meritocracia, o mesmo que em outros países ajudou o sistema educacional a atingir altos níveis de qualidade. Diz Haddad: “A obrigação de toda pessoa de bom senso é se inspirar no que funciona bem em outros lugares”. Por essas e outras, o ministro, que é filiado ao PT desde 1983, mereceu críticas de militantes. Formado em direito e com mestrado em economia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP), Haddad chegou a Brasília em 2003, como assessor no Ministério do Planejamento, e há dois anos comanda a Pasta da Educação. Casado e pai de dois filhos, ele diz que os grandes problemas da educação brasileira podem ser definitivamente erradicados no prazo de duas décadas.
Veja – O senhor concorda com os educadores segundo os quais as escolas no Brasil estão passando uma visão retrógrada do mundo a seus alunos?
Haddad – Isso acontece, sim. Um problema evidente é o dogmatismo que chega a algumas salas de aula do país. Ele exclui da escola a diversidade de idéias na qual ela deveria estar apoiada, por princípio, e ainda restringe a visão de mundo à de uma velha esquerda. Não é para esse lado, afinal, que o mundo caminha. Sempre digo que em uma igreja ou em um partido político as pessoas têm o direito de promover a ideologia que bem entenderem, mas nunca em uma sala de aula. A obrigação da escola é formar pessoas autônomas – capazes, enfim, de compreender de modo abrangente o mundo em que vivem. Todo procedimento que mutila isso é incompatível com um bom processo de aprendizado. Em suma, educação não combina com preconceito.
Veja – Por que, então, o MEC aprova livros didáticos com esse viés?
Haddad – Temos um sistema de escolha dos livros didáticos com o qual, em tese, especialistas de diferentes matizes ideológicos concordam. É simples. Mandamos os livros para as melhores universidades públicas do país, e são os professores escolhidos por elas que opinam. Depois, as escolas escolhem os livros da lista que consideram mais apropriados. Nesse sistema, portanto, o MEC não atua como um censor com superpoderes, mas, sim, delega a tarefa a um conjunto de pessoas qualificadas para executá-la. Não inventamos essa fórmula. A avaliação de trabalhos acadêmicos feita por pares funciona em vários países desenvolvidos – e aliás muito bem.
Veja – O fato de livros de conteúdo dogmático passarem por essa peneira não é um sinal, então, de que o sistema não funciona?
Haddad – Todo sistema dessa natureza tem falhas, e o do MEC não é exceção. A meu ver, no entanto, o problema não é propriamente com o modelo que implantamos, mas justamente com a visão dogmática que ainda circula em parte do meio acadêmico. O tipo de material didático que chega à sala de aula é, afinal, reflexo de um modo de pensar próprio de uma parcela da intelectualidade brasileira, em todos os níveis. Reafirmo minha opinião sobre o assunto. Eu acho que cada um deve ter suas convicções e crenças, mas, de novo, quando se fala de educação é preciso ser mais pluralista, ir de A a Z no espectro ideológico – senão, simplesmente não dá certo.
Veja – O Brasil historicamente se sai mal em relação aos outros países nos rankings que medem a qualidade de ensino. Qual a explicação para isso?
Haddad – Tenho visitado escolas públicas no país inteiro nesses últimos meses. Observo, por exemplo, que assuntos capitais do século XX, como as duas grandes guerras mundiais ou a queda do Muro de Berlim, passam ao largo de uma discussão mais atual – não só nos livros mas também nas aulas. Parece-me que ninguém até este momento parou para estudar alguns dos capítulos cruciais da história recente da humanidade sob uma perspectiva contemporânea. É claro que isso faz cair o nível das aulas. É preciso ressaltar, no entanto, que a educação no Brasil pena com algo ainda mais básico, que é o preparo dos professores. Temos um claro déficit de pessoal realmente capacitado para ensinar as crianças.
Veja – Qual a real dimensão desse problema?
Haddad – Fizemos um levantamento cuja conclusão é desastrosa para o país. Ele mostra, por exemplo, que o número de físicos formados no Brasil nas últimas três décadas não é suficiente para atender a um terço da demanda atual das escolas. É isso mesmo: sete de cada dez pessoas que entram em sala de aula no Brasil para ensinar a matéria não fizeram o curso de física na universidade. Essa é a realidade de muitas das crianças brasileiras, sobretudo nas escolas públicas. Em outras matérias na área de ciências, como química e matemática, o mesmo e desanimador cenário se repete.
Veja – O que fazer para mudar isso?
Haddad – Acho que é necessário criar incentivos para que as pessoas se interessem por essas carreiras. A primeira das medidas nas quais aposto nesse sentido é a distribuição de novas bolsas de iniciação científica. A outra é mais do que dobrar o número de escolas técnicas de nível superior do país, o que já está previsto. Com cursos de duração mais curta e direcionados para o mercado de trabalho, essas escolas conseguiram em outros países massificar o número de pessoas com nível superior em todas as áreas. Tudo isso é urgente para nós. No mês passado, a OCDE (organização que reúne países da Europa e os Estados Unidos) divulgou um trabalho que revela que os países do Primeiro Mundo formam todo ano duas vezes mais jovens em áreas de ciências do que o Brasil. Isso mostra que nos distanciamos ainda mais do Primeiro Mundo. Mesmo assim, é preciso que se faça a ressalva, o Brasil tem excelência na produção científica. Digo isso com base nos melhores indicadores internacionais disponíveis.
Veja – Por que, então, o Brasil ainda está tão atrás dos outros nos rankings de inovação tecnológica?
Haddad – Temos um problema sério aí. A universidade brasileira produz tradicionalmente conhecimento que não interessa ao mundo real. Por isso, muitas idéias ficam confinadas ao universo acadêmico, sem que de fato impulsionem o país na competição global, como deveriam. Sempre tive a convicção de que para mudar o cenário o governo precisava dar um empurrão – e é esse resultado que espero com a nova lei que vai aliviar a carga tributária das empresas que investirem em pesquisa, nos moldes do que faz a Lei Rouanet na cultura. Dessas empresas, evidentemente, há mais chances de vir a pesquisa aplicada de que o Brasil tanto precisa. De novo, não estou inventando nada. Basta observar o que funciona lá fora. Há um século é assim nos Estados Unidos. Na Coréia do Sul, 80% da pesquisa do país é financiada por empresas privadas, não pelo governo – e os coreanos estão no topo do ranking da inovação tecnológica.
Veja – É por essas e outras idéias que o criticam por ser “petista de menos” nas ações?
Haddad – Embora nunca tenham me dito nada parecido, sei de ouvir dos outros que esse é um de meus rótulos. Provavelmente é porque cultivo interlocutores de todos os matizes ideológicos. No governo, muitas vezes os debates se dão na base do “nós, governo” e “eles, oposição”. Eu fujo dessa visão sectária. Acho que com isso as políticas públicas melhoram. O que ainda pesa em meu favor é o fato de estar em uma raríssima área em que há basicamente consenso sobre o diagnóstico dos problemas e as estratégias para superá-los.
Veja – O senhor tem críticas ao PT?
Haddad – O PT não é monolítico. Acho que a cultura assembleísta que ainda é cultivada por gente do partido atrapalha, especialmente quando serve de pretexto para que não se tomem decisões. Isso é contraproducente, paralisante. No governo não se tem o tempo dos anjos para definir rumos. Se esperasse por um consenso geral, talvez fosse mais popular, mas certamente não sairia do lugar. Outra lição que depreendi desses tempos em Brasília é que às vezes a melhor estratégia de sobrevivência é manter o silêncio e a discrição. Foi assim que permaneci no ministério. Numa analogia com o mundo da moda, meu esforço é para ser mais prêt–porter – e não tão alta-costura, como alguns de meus colegas.
Veja – O senhor não acha que o abuso de greves nas universidades atrapalha?
Haddad – Acho que houve uma vulgarização da greve, e isso evidentemente não nos ajuda. Precisamos de mais pragmatismo para vencer nossas evidentes fraquezas na educação e alcançar os países de que ainda estamos distantes. Começamos a corrida estabelecendo uma meta de médio prazo.
Veja – É realista esperar que o Brasil ofereça ensino comparável ao do Primeiro Mundo em quinze anos, como prevê o MEC, tendo saído de um patamar tão baixo?
Haddad – Sei que estamos diante de uma meta ousada. O projeto do governo prevê dar um salto na qualidade de ensino de modo a alcançar os melhores países do mundo em educação num tempo muito menor do que o que eles próprios levaram para chegar lá. Irlanda e Coréia, por exemplo, precisaram cada qual de três décadas para executar uma revolução em sala de aula. É isso mesmo: nós estamos tentando obter resultados semelhantes com a metade do tempo. Esses cálculos ajudam a dimensionar o tamanho de nossa ambição – e das dificuldades à vista. Tendo feito a ponderação, ainda acho que estamos no terreno do possível, porque, com as várias avaliações do ensino disponíveis no Brasil, o país está conseguindo jogar luz sobre as boas escolas e chamar atenção para aquelas nas quais se pratica o péssimo ensino. De um lado, os pais ganham um termômetro para saber se seus filhos estão num bom colégio. De outro, o governo tem na mão uma ferramenta para identificar as práticas que levam ao sucesso acadêmico, que devem ser reproduzidas em todas as escolas – e para cobrar resultados.
Veja – O que afinal tem dado mais certo nas escolas brasileiras?
Haddad – A radiografia por escola reafirma com dados contundentes aquilo que já é senso comum: as melhores da lista são aquelas que têm no comando um diretor que está lá pelo mérito – e não por razões políticas. É básico, mas ainda raro no Brasil. Uma pesquisa do MEC aponta para um sistema de escolha de diretores que tem dado certo. De acordo com esse sistema, os candidatos ao posto de diretor fazem uma prova e só os que têm bom desempenho no teste podem pleitear a vaga. O corte é, portanto, baseado no mérito. O segundo ponto que considero relevante sobre os colégios nota 10 é que eles têm variadas formas de incentivar as famílias a participar mais da rotina escolar dos filhos. Esse é mais um dos fatores que têm contribuído para a excelência em outros países, mas, em geral, não no Brasil. Também está bastante claro que as boas escolas, de algum modo, conseguem dar aos professores certos horizontes na carreira – e é interessante notar que nem sempre eles são financeiros.
Veja – O governo estabeleceu um piso salarial para os professores, mas pesquisas internacionais mostram que o aumento de salário tem muitas vezes efeito zero sobre a qualidade de ensino…
Haddad – Reunimos evidências para afirmar que em alguns dos lugares mais pobres do Brasil a falta de recursos, entre outras coisas, para pagar melhor aos professores ajuda a explicar, sim, a baixa qualidade do ensino. Por isso voltamos à questão financeira. No entanto, estou ciente de que só é possível avançar se, de algum modo, conseguirmos premiar quem for capaz de formar os melhores estudantes. No novo sistema do MEC, as escolas que aparecerem no topo do ranking nacional ganharão em autonomia financeira. Hoje as escolas mal têm dinheiro em caixa para comprar uma borracha. Com um bom resultado, elas conquistarão o direito de gerenciar suas finanças. Ficarão, enfim, mais independentes do estado – e acredito que assim podem funcionar melhor. Mas precisam fazer por merecer o prêmio.
Veja – O senhor vê obstáculos à execução desse plano?
Haddad – Algumas pragas brasileiras sempre podem atrapalhar. O corporativismo é certamente uma delas, embora, até então, não tenha recebido nenhuma moção de protesto contra essas medidas. A outra praga da qual precisamos fugir é a tradicional descontinuidade das políticas públicas no país. A cada novo governante, tudo muda de rumo e lá se vão anos de trabalho pelo ralo. Com tanto que o país ainda precisa avançar, não dá mais para recomeçar do zero. Por fim, não resta dúvida de que o Brasil terá mais chance de sucesso não só quando as aulas tiverem um nível mais elevado, mas também quando o dogmatismo deixar de vez as salas de aula. Em Cuba, os estudantes vão bem nas provas, mas em compensação saem da escola despreparados para atuar como indivíduos autônomos no mundo moderno. O Brasil deve ambicionar muito mais do que isso.
Fonte: Veja nº 2030 (para assinantes)
Luiz Fernando R. de Sales
05/02/2016
Deivison Conceição
04/11/2015
Gildson Gomes dos Santos
04/11/2014
Gildson Gomes dos Santos
27/09/2014
Luciana Virgília Amorim de Souza
25/09/2014