“Em seus quase dois séculos de história, o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte brasileira, nunca havia convocado uma audiência pública. Na sexta-feira passada, aconteceu a primeira, quando 22 especialistas em áreas como genética, bioquímica, neurociência e biomedicina compareceram a um auditório lotado do tribunal para tentar responder a uma pergunta à qual a humanidade jamais encontrou uma resposta única: quando começa a vida humana? Começa no momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo, como defende a professora Claudia Batista, doutora em neurociência da Universidade Federal do Rio de Janeiro? Ou quando o óvulo fecundado adere à parede do útero, como quer o neurofisiologista Luiz Eugênio Mello, da Universidade Federal de São Paulo? Ou será que a vida começa quando aparecem as primeiras terminações nervosas que resultarão no cérebro, como advoga a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo? O debate no STF durou o dia inteiro e, naturalmente, não chegou a um consenso, mas ajudou a jogar um pouco de luz sobre uma das questões mais profundas da filosofia: a gênese da vida.
A discussão aconteceu para subsidiar os ministros do STF a respeito da Lei de Biossegurança. Em vigor desde março de 2005, a lei autorizou as pesquisas com células-tronco de embriões humanos, mas fez restrições: os pesquisadores só podem usar embriões inviáveis, que serão descartados pelas clínicas de fertilização, ou embriões congelados há pelo menos três anos. Em maio de 2005, o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, entrou com uma ação no STF alegando que a Lei de Biossegurança era inconstitucional. Em suas alegações, o procurador disse que, ao autorizar o uso de embriões, a lei violava o direito à vida, garantido no artigo 5º da Constituição. Estava colocado o debate sobre o início da vida. Se ela começa com a existência de um embrião, a Lei de Biossegurança então é uma violação constitucional. Mas se a vida começa mais tarde, quando o embrião atinge níveis mais elevados de desenvolvimento, então não haveria nenhum obstáculo legal à vigência da lei.
“O Supremo está numa posição desconfortável e estranha”, avalia o filósofo Roberto Romano, professor de ética da Universidade Estadual de Campinas. “Terá de adentrar um árido debate filosófico e moral que nem mesmo os grandes pensadores da humanidade conseguiram chegar perto de resolver.” Antes mesmo de responder sobre o início da vida, há que definir o que se entende por “vida”. Parece banal, mas é uma questão espinhosa. No artigo 5º, a Constituição define a inviolabilidade da vida humana, e não de qualquer vida. No mundo animal, da prosaica pulga à assustadora sucuri amazônica, a vida se limita às funções biológicas. No caso dos humanos, porém, o conceito de vida, além das funções biológicas, inclui a consciência, a capacidade para raciocinar, escolher, decidir – enfim, tudo aquilo que nos torna vivos e únicos. Nessa hipótese, um embrião não seria dotado de vida humana, pois não tem consciência nem raciocina. Claramente, porém, um embrião tem alguma vida, pois do contrário não evoluiria. Deve então ser protegido pela Constituição? Ou, como fala só da vida humana, a Constituição não chega aos embriões?
É aparentemente paradoxal, mas o avanço do conhecimento humano, em vez de facilitar o entendimento sobre o começo da vida, tornou-o mais complexo. Na Antiguidade, a filosofia grega, de modo geral, não se preocupava com a passagem do tempo nem, portanto, com a origem ou o começo da vida. Aristóteles foi um dos poucos a tentar explicar essa gênese, ao elaborar a teoria da “animação mediata”, pela qual a alma se juntaria ao corpo semanas após a concepção. A idéia foi adotada tempos depois pelo cristianismo, que a manteve como dogma por longo tempo. Para a medicina, o período entre a concepção e o nascimento também era um grande mistério. Apesar disso, o pai da medicina, o grego Hipócrates, pregava que não se podiam ministrar remédios que pudessem matar o bebê em gestação – o que sugere que, para ele, a vida começava no momento da concepção.
Com o Renascimento, a partir do século XV, tudo muda. Galileu Galilei e Isaac Newton revolucionam a física, a Igreja perde força e o estudo da origem do homem floresce. O primeiro a perceber isso foi o filósofo francês René Descartes, no século XVII, que proclamou: “Penso, logo existo” – e a vida, formulada assim, passou a ter uma íntima conexão com o raciocínio, com a consciência. Nos séculos seguintes, com a invenção do microscópio e os primeiros registros científicos da fecundação, até a Igreja Católica mudou sua idéia de que a vida tinha início quando o feto começava a se movimentar dentro da barriga da mãe. Passou a identificar a criação no momento da concepção. No decorrer do século XX, o avanço da genética e da biologia complicou de vez a clareza sobre o entendimento dessa gênese. A manipulação de embriões humanos e as descobertas das diferentes etapas do desenvolvimento do feto criaram novos desafios tanto para a ciência e a filosofia quanto para a religião e o direito. Quanto mais nuances a ciência identifica na gestação do ser humano, mais difícil se torna o debate.
A definição sobre a vida também pode ser buscada pelo seu reverso – a morte. Até meados do século passado, a medicina informava que a morte acontecia quando uma pessoa parava de respirar ou quando seu coração parava de bater. Hoje, com os avanços científicos, a medicina criou o conceito de “morte encefálica”, assim definido o momento em que o cérebro deixa de funcionar. Sob o novo conceito, a morte pode ser decretada quando o coração ainda bate – e, assim, pragmaticamente, é possível retirar os órgãos para fins de transplante. Diante disso, se a vida acaba quando o cérebro pára, é lícito supor que ela só começa quando o cérebro se forma. É o pensamento de uma corrente expressiva de cientistas, principalmente os especialistas em neurociência, para os quais a vida começa junto com a formação das primeiras terminações nervosas, coisa que só ocorre por volta da segunda semana de gestação. Pode-se alegar que, num óvulo recém-fecundado, o cérebro não funciona ainda – e que, no caso da morte encefálica, o cérebro não funciona mais. Ou seja: num caso a vida está por vir, no outro a vida se foi. Num caso ela é futuro, no outro ela é passado. Ainda assim, em ambos os casos, passado ou futuro, a vida efetivamente inexistiria. E aí?
Há uma resistência a aceitar que sejamos apenas um emaranhado de neurônios que, conectados por impulsos elétricos, respondem por nossas festas e lutos, alegrias e tristezas. Claramente, somos mais que apenas isso. Mas o quê? Uma consciência? Um sopro divino? Simbiose sagrada entre corpo e alma? Ou, como indaga Hamlet, o genial personagem de Shakespeare, seremos uma obra de arte, a beleza do mundo, o paradigma dos animais, a quintessência do pó? “Pode suceder que esse debate deságüe numa perplexidade: é impossível dizer quando a vida começa”, diz o ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo sobre a Lei de Biossegurança. Nos países da Europa, a discussão sobre a pesquisa de células-tronco embrionárias não girou em torno do começo da vida. Em geral, a preocupação se resumiu a assegurar que os pesquisadores não façam clonagem ou experimentos genéticos. Nos Estados Unidos, o debate aconteceu na mesma direção que no Brasil – sobre a vida. “A pergunta moral a ser feita não é quando começa a vida, mas quando – e se – o embrião ou o feto alcança o mesmo status moral de uma pessoa”, disse a VEJA o filósofo Peter Singer, da Universidade Princeton, um dos maiores estudiosos das implicações éticas desse tipo de pesquisa. E ele completa: “Para mim, a resposta é negativa: um feto nunca terá a mesma importância de uma pessoa. Um feto ou embrião não tem consciência nem noção de futuro, e é isso que define uma pessoa”.”
Fonte: Revista Veja.
Luiz Fernando R. de Sales
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