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Desbanalização da imoralidade

Por Gildson Gomes dos Santos*

Desde o mensalão vivenciamos no Brasil uma espécie de contracultara da ética na gestão da coisa pública. Setores da sociedade, especialmente o meio político, esforçam-se para impor aos incultos a cultura da “barriga cheia”, do gozo material, como se isso fora suficiente à realização do ser humano. Ora, se bolso cheio, realização financeira, fosse sinônimo de felicidade, não se falaria em suicídio em países ricos.

O fato é que a satisfação de necessidades fisiológicas, materiais ou estéticas não preenche o ser humano, cuja estrutura – desenganadamente -, também se apóia em alicerces espirituais ou morais. No Brasil, um dos pilares caros à nossa sociedade é o princípio da moralidade, que eclodiu da pena dos juristas, caiu na graça dos juízes, findando por ser positivado na mais importante lei do país: a Constituição Federal. O princípio da moralidade é, atualmente, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

A moralidade, contudo, precisa ser bem compreendida para que dela possamos extrair sua máxima virtualidade. Como o oxigênio que respiramos, não a vemos, mas dela dependemos incondicionalmente. Tal como o O é um bem essencial à nossa existência física, a moralidade é um bem sem o qual a nossa estrutura espiritual inexiste. A propósito, bem é, por definição, aquilo para quê os seres tendem (inclusive os espirituais). É aquilo de que algo depende enquanto ser. A planta não sobrevive sem a luz do Sol. De modo análogo, a sociedade depende da moralidade para existir enquanto tal.

A existência da sociedade, é claro, está subordinada a uma série da fatores indicativos de um certo estado de normalidade. A moralidade, enquanto um conjunto de bens morais eleitos pela comunidade como faróis de seu progresso e aperfeiçoamento, é sinal de virtude, comunhão, de normalidade. A imoralidade é seu pólo negativo, ícone da marginalidade, da excomunhão, da anormalidade. Do ponto de vista da gestão pública, os bens morais, cujo conjunto denomina-se moralidade, são: a lealdade às instituições, a lisura, a honestidade, a imparcialidade, a seriedade, a transparência.

Por que, afinal, essas rubricas denotam bens indispensáveis à administração da coisa pública? A uma, enquadram-se no conceito de bem porque não se pode conceber um “bom comportamento” administrativo desassociado de tais valores. A duas, são imprescindíveis porque foram escolhidas pela Nação como condição de seu desenvolvimento espiritual, motivo pelo qual também se encontram positivadas pelo Direito brasileiro.

Finalmente chegamos ao ponto. É preciso deixar claro para a comunidade que a moralidade jurídica não é obra de natureza cerebrina. Um feixe de postulados metafísicos suspenso no ar. Pelo contrário, esse conjunto de bens morais a que nos referimos tem natureza empírica, é fruto da experiência sensível. Como o oxigênio, não o vemos, mas sentimos seus efeitos. Ora, quem não percebe a deslealdade está sendo evidentemente traído. Quem não sabe o que significa a traição? Quem não sabe o que é ser desonesto, opaco e parcial? É óbvio que esses comportamentos são incompatíveis com o senso moral, com a moralidade – no sentido que emprestamos ao termo.

Por ser um conjunto de bens fundamentais à associação humana, a moralidade, exatamente por ser um bem, precisa ser defendida, preservada, conservada, promovida, valorizada, avaliada, reavaliada, reforçada. Ao contrário do que imagina o pensamento tradicional, a moralidade não se auto-reproduz, não se auto-regula, não é, no dizer da doutrina pós-metafísica, autopoiética. A moralidade é algo produzido no cadinho da experiência pela própria sociedade a partir de bens culturais comuns e se sustenta na convicção generalizada de que não é possível abrir-se mão da tábua de valores que a caracteriza sem correr o risco de cair no abismo da banalização.

Toma-se como exemplo fatídico desta tese, o caso recente da Universidade de Brasília – UnB, onde se tentou emprestar foros de normalidade a suposto comportamento imoral. Logo, incompatível com a lealdade às instituições, a lisura, a honestidade, a imparcialidade, a seriedade, a transparência. Embora não haja ainda sentença definitiva, essa circunstância não prejudica, porém, a conclusão segundo a qual restou claro e induvidoso que o princípio da moralidade só se fez expressão da vontade geral do povo a partir do momento em que os estudantes da UnB saíram em defesa dos valores que o identificam.

O desfecho da ação estudantil com apoio na moralidade consagrada na Constituição Federal é fato notório. O magnífico reitor, acusado de usar e abusar do cargo em benefício próprio, para ampliar o seu próprio conforto, acabou renunciando-o, com ele também o vice. É isso que chamamos de desbanalização da imoralidade (para alguns, da ética pública). Tudo indica que o Supremo Tribunal Federal orienta-se no mesmo sentido ao ter recebido a denúncia contra os mensaleiros, desenganando de forma incisiva aqueles que sustentam a igualização por baixo.

*Doutorando pela Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires – ARG.

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